NA ABA DO MEU CHAPÉU

debaixo do mesmo chapéu há várias cabeças!






1
CENTELHA:
durante a formação em arquitetura e urbanismo, a arquiteta praticava aulas livres de dança contemporânea.

a arquiteta -  sentia dores nas costas de tanto ficar debruçada sobre a prancheta. Tinha o corpo tenso e a respiração contida no peito. Queria sentir e saborear as coisas com o meu corpo. As aulas de dança eram o meu descanso.

O rito de iniciação à aula de “Consciência Corporal” do Estúdio Dudude Hermann era andar pelo espaço para chegar no tempo da aula.  E, desdobrando essa experiência no trajeto de volta para casa, eu seguia pela cidade praticando o rito de iniciação. Desconectada das funções do dia-a-dia respirava e observava as extensões da cidade, as reocupações urbanas, os fluxos, os cruzamentos e entrecruzamentos, afinando minha percepção com a gramática de Belo Horizonte. Assim, de corpo aquecido, percebia as ruas de fundo de vale, as ligações entre vias de cumeeira (circulação de topo de montanha), a circulação dos ventos, o caminho das águas, o movimento do sol, a implantação de edifícios e a trajetória de corpos numa cartografia que se desenhava por meio de uma leitura incorporada entre a cidade e a natureza que aos poucos deixa de existir. Nessa “corpografia[1]”, eu apontava pontos altos e baixos pela temperatura do ar, percebia avenidas e ruelas pela luz ou sensação de estreitamento, descobria avenidas importantes através do fluxo das águas e desvendava pontos de encontro através de clareiras abertas pela dinamicidade da vida diária. Essas, entre outras orientações sensoriais, mapeavam uma Belo Horizonte lida pelo meu corpo.

Essa dimensão estética agitou em mim o desejo de simular problemas urbanos com a arte da performance!

2
ACELERAÇÂO:
um grupo de estudantes do último período em arquitetura e urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA disseram que o bairro da Pituba é “ideal” para se viver.

estudantes de arquitetura - o Bairro da Pituba é “ideal” porque sua malha urbana é organizada e regular, com distribuição adequada de serviços, comércios e residências o que torna este espaço aprazível e de fácil circulação, sua oportunidade de viver bem.

a arquiteta - será que a função do arquiteto é deixar os bairros assim? Tão assépticos e organizados? Também aprendi isso na faculdade… Mas não gosto desse bairro… A avenida com maior circulação de pessoas não tem sombra na calçada! E haja luz na Praça Nossa Senhora da Luz! Para mim não tem nada de ideal. E para você?

o artista - X Documenta de Kassel, em 1997, Tunga apresenta a performance “Inside Out, Upside Down”. A primeira aparição dessa performance foi na abertura da Bienal de Veneza, em 1995, com o título “Passeio de Vanguarda em Veneza” ou “Debaixo do meu chapéu” e retorna incorporada por moças na abertura da X Documenta.

a arquiteta - guardei a figura no coração.

3
MORTE:
“a produção do desejo, produção de realidade é ao mesmo tempo (e indissociavelmente) material, semiótica e social” (ROLNIK, Cartografia Sentimental, 2007, p.46).

Seleção no edital Giro das Artes Visuais de Apoio à Circulação de Exposições 2009 – Salvador – Bahia.

Apresentação da performance “Na aba do meu chapéu” no dia 9 de junho de 2011.

1 chapéu de palha com 4 metros de diâmetro desmontável.
6 performers anunciando carona de sombra.
1 fotografo.
1 vídeo maker.

EU PROPOSITOR (ofereço um artifício que atenda uma carência detectada por mim) + OUTRO IDEAL (aceita o artifício) = [ ? ]

nem todos aceitam...

o de fora - foi lindo ver o chapelão circular! Um elemento novo no cotidiano da Avenida Manuel Dias que contaminou a fala do ambulante e desestabilizou a rotina daquele lugar. As pessoas olhavam com graça [ou desconfiadas]. Um estado de inércia foi rompido.

o de dentro – foi preciso criar um estado de euforia sob o chapéu. Braços erguidos sustentando o peso da palha e um trajeto a cumprir… Pouca participação colaborativa. Muitos foram acobertados. Outros caçados. E todos [com raras exceções] mantinham uma presença passiva — recebiam a sombra e faziam cara de paisagem.

o de dentro-fora - ehhh! Olha o chapelão! Tá gravando? Vai sair aonde? Rola uma grana?

4
CENTELHA:
o urbanismo é uma das formas de falar sobre cidade. Como operar esse discurso incluindo a subjetividade das pessoas?

a arquiteta - o que foi problematizado? O meu falo heteronormativo quando digo que sou arquiteta? Parece que o chapéu completou a ordem do lugar, já que só faltava sombra na Avenida Manoel Dias.

Peter Pal-Pelbart - “inspirado no personagem de Joyce, Bloom seria um tipo humano recém-aparecido no planeta, e que designa essas existências brancas, presenças indiferentes, sem espessura, o homem ordinário. Bloom tem a tonalidade afetiva que caracteriza nossa época de decomposição niilista, ele é o momento em que vêm à tona nossa estranheza e inoperância, para além ou aquém de todos os problemas sociais de miséria, precariedade, desemprego etc. Bloom é a figura que representa a morte do sujeito e de seu mundo, onde tudo flutua na indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias infinitamente intercambiáveis e substituíveis. Pouco importam os conteúdos de vida que se alternam e que cada um visita em seu turismo existencial, o Bloom é já incapaz de alegria assim como de sofrimento, analfabeto das emoções de que recolhe ecos difratados”. (PAL-PELBART, Como viver só, 2006, p.269).

comparsas de pensamento - o sol não é um “tabu” para os nordestinos, mas a chuva sim, já que a lotação voluntária sob o chapéu se deu num dia de chuva. Quando chove a exceção ganha status de emancipação no jogo oficial.

a arquiteta - a intenção primeira do chapéu é firmar presença, interromper a rotina do lugar para modelar ações participativas pelo bem comum. Ele interceptou, mas não mobilizou… Isso aconteceu pelo fato do sol não ser um incômodo ou pela convicção de que a presença absurda do chapéu não faz parte da regra?

5
ACELERAÇÃO:
“ora, quer as plantas produzam rebentos quer floresçam quer produzam frutos, são, no entanto, sempre os mesmos órgãos que, em múltiplas funções e sob formas muitas vezes alteradas, levam a cabo a prescrição da Natureza. O mesmo órgão [a saber, a folha], que no caule se expande como folha e toma uma forma altamente variada, contrai-se agora no cálice, expande-se outra vez nas pétalas, contrai-se nos órgãos sexuais, para se expandir pela última vez como fruto”. (GOETHE, A metamorfose das plantas, s/d, p.67) — o universal e o particular sob diferentes condições.

a arquiteta - depois da ação estava leve. Ter gritado por quase uma hora me fez liberar alguns estresses. Porém, meu estado era de tristeza e de reflexão — o mesmo sentimento de dois anos atrás quando fiz o chapéu pela primeira vez em Recife. Minhas questões permeavam entre o “eu propositor” e o “outro ideal”. Altruísmo ou satisfação da minha crença? E a possibilidade de vibrar junto, será que existe?

(…)

E se eu engatar a marcha no sentido reverso…


Praça Nossa Senhora da Luz em um dia de muita luz < praça vazia < nada de sombra < chapéu de palha com 4 metros de diâmetro < 6 performers sustentando a malha de palha e  anunciando carona de sombra < trajeto acordado conforme o fluxo principal da Avenida Manoel Dias < anuncio de carona grátis gritado por todos < nenhuma adesão < animação! simpatia! sedução! < simpatia-indiferença < acobertar! oferecer! convocar! < aceitação-medo < insistir! implorar! doar! < sigo-ao-lado-mas-não-entro < pedir… < sigo-mas-quanto-vale? < por favor… < sigo-flash-tchau < … < 6 performers exaustos < muito sol < 6 performers abraçados por um chapéu gigante < nenhum comentário < rua vazia

O que será que acontece?



[1] “A cidade é lida pelo corpo e o corpo escreve o que poderíamos chamar de uma ‘corpografia’. A corpografia seria a memória urbana no corpo, o registro de sua experiência da cidade. A imagem espetacular, ou o cenário, só necessita do olhar. A cidade habitada precisa ser tateada, assim como esta possui sons, cheiros e gostos próprios, que vão compor, com o olhar, a complexidade da experiência urbana”. (JACQUES, Corpos e cenários urbanos, 2006, p.119).




















Informações importantes:

Aconteceu no dia 09/06/2011, às 11 horas.
Duração: 2h00min
Performers: Carol Érika, Adalberto Palma, Tomas, Dionísio, Ana Fernanda, Vanessa.
Assistente de produção: Adalberto Palma
Foto: Aldren Lincoln
Vídeo: Marcondes Dourado
Este projeto foi contemplado pelo edital Giro das Artes Visuais de Apoio à Circulação de exposições 2009

Referências:

JACQUES, Paola Berenstein; JEUDY, Henri Pierre (Orgs.). Corpos e cenários urbanos: territórios urbanos e políticas culturais. Salvador: EDUFBA; PPGAU/FAUFBA, 2006.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007.
PELBART, Peter Pál. Como viver só. São Paulo: 27ª Bienal, 2006.
GOETHE, A metamorfose das plantas. In: SEDLMAYER, Sabrina; CORNELSEN, Elcio. Limiares e passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.